Em Mendoza, na Argentina, o laboratório de pesquisas em fabricação digital Nodo 39 FabLab criou uma estrutura-bastidor de tecido feita em madeira cortada digitalmente com telas e pontos para facilitar o processo de tecelagem e composição iconográfica dos indígenas da região central do país. No interior do Ceará, Brasil, por meio de uma pesquisa intitulada “Artificies Digitais” da Universidade Federal do Estado, fez-se o uso de ferramentas de fabricação digital, mais especificamente a impressão 3D, para a obtenção de modelos digitais das partes danificadas do retábulo do altar-mor da Igreja Matriz da cidade de Russas, sendo possível a produção de próteses digitais para sua restauração.
Estes são apenas dois exemplos de uma infinidade de iniciativas que têm surgido na tentativa de aliar as técnicas artesanais e a tecnologia digital. Um movimento que parece demostrar a estranha contradição que existe no mundo (e na arquitetura) hoje em dia. Com as ferramentas digitais tornando tudo mais acessível e mais parecido, mantem-se um desejo inerente de expressar qualidades únicas para cada local, cada comunidade, cada arquiteto. Neste sentido, a conexão entre estes dois mundos, digital e vernáculo, parece despontar como uma alternativa entre a reprodução sistemática e a qualidade única de cada criação.
Há quem diga que a própria fabricação digital aplicada à arquitetura representa uma espécie de “retorno à materialidade”, vista como uma reaproximação do material e da técnica em detrimento ao saber intelectual, principalmente quando se fala dos maquinários específicos que estão cada vez mais presentes dentro das universidades. Entretanto, cabe atenção ao fato de que essa introdução não deve ser vista apenas como uma atualização tecnológica, reduzida a uma ferramenta, mas como uma importante oportunidade para se repensar o modo de fazer a arquitetura e reconectá-la aos princípios de sustentabilidade ambiental e social.
Neste contexto, surge o que se tem chamado de “vernacular digital”, uma estratégia que combina princípios da arquitetura tradicional e tecnologias digitais do presente com objetivo de elevar a acessibilidade e a inovação em um desenho contemporâneo de contexto global. Segundo os autores do livro Digital Vernacular: Architectural Principles, Tools, and Processes, Stevens e Nelson, voltar continuamente às origens é uma forma de permanecer conectado a questões fundamentais na arquitetura que podem ser abordadas com novos insights e novas perspectivas.
Apesar dos fundamentais trabalhos teóricos, esta junção de técnicas na prática ainda se mostra muito incipiente, quase sempre relacionada à protótipos de pequena escala, mas de grande contribuição para nossa disciplina. Scheeren e Sperling da FAU-USP quando abordam o tema “artesanias híbridas” citam como exemplo o dispositivo Parabrick, construído pelo laboratório universitário FabLab CIDI de Assunção, Paraguai. O tijolo, como se sabe, é uma das matérias primas mais utilizadas na arquitetura paraguaia, pela facilidade de acesso quando se trata da autoconstrução, e pela grande popularidade que recebeu no meio arquitetônico com o legado de Solano Benítez. Com isso em conta, o FabLab CIDI criou um dispositivo que fornece suporte para linhas-guias que orientam diferentes composições geométricas de alvenaria. Feito digitalmente com peças de madeira fresadas e encaixadas, ele pode ser montado no canteiro de obra para facilitar o trabalho manual. Um processo similar ao CeramicINformation Pavilion exposto em 2018 na Bienal de Arquitetura e Urbanismo de Shenzhen, China.
Seguindo essa mesma linha, o livro citado anteriormente traz um exemplo interessante que também utiliza o tijolo local mesclando fabricação digital e processo artesanal, mas dessa vez, do outro lado do oceano, na Índia. Por meio da parceria entre o FabLab da Lawrence Technological University e o arquiteto de Nova Deli, Ayodh Kamath, criou-se um sistema de moldes feitos na máquina de corte à laser que dão forma aos blocos de argila extraída do local. Com um software paramétrico, cada bloco é ajustado e personalizado em uma posição pré-determinada para criar as torções características das chaminés inglesas dos séculos XVII. A cúpula em questão foi construída por pedreiros locais que colocaram cada bloco usando medições geradas por computador. Enquanto estava sendo erguida pelos artesãos, uma máquina CNC foi usada para criar perfurações nos tijolos possibilitando a entrada de luz e ventilação.
Indo um pouco mais além, em 2010, o alemão Markus Kayser testou a sua primeira máquina SolarCutter no deserto egípcio. Aliando os dois elementos naturais mais abundantes da região – sol e areia –, Kayser focalizou a luz na areia e criou uma sílica “pegajosa” que delimitou o objeto final. Com essa solidificação da areia ele retorna aos primórdios do artesanato em cerâmica, quando se usava uma compreensão de sinterização (processo de usar calor para aglomerar um mineral granular). Esse experimentou acabou por servir como base para um processo totalmente novo de produção e impressão 3D tanto que, anos depois, foi nomeado como processo D-Shape que permite a impressão de peças de dimensão 6m x 6m x 1m com o objetivo futuro de construir um edifício inteiro. As peças feitas pelo D-Shape se assemelham àquelas produzidas incialmente já que são compostas por um tipo de arenito. Sua solidez e força são equivalentes ao concreto armado.
Seja com a terra, com a areia ou com qualquer outro material natural, os exemplos acima foram selecionados como ferramentas para repensarmos a conexão entre a tecnologia e os materiais e técnicas locais. Eles nos mostram que não é preciso abandonar o vernáculo para usar tecnologia ou vice-e-versa, enfatizando que o caminho para uma construção civil mais sustentável social e ambientalmente parece ser o meio termo entre os dois.
Apesar de serem exemplos de pequena escala, eles abrem os caminhos para que trabalhos mais avançados e complexos possam surgir futuramente quando muitas das barreiras que hoje enfrentamos na sua aplicação sejam contornadas. Por se tratarem de aplicações embrionárias, vale ressaltar ainda a importância dos laboratórios universitários visto que a maioria dos exemplos citados surgem dentro de protótipos nas universidades onde a equipe se torna responsável por conectar a tecnologia digital disponível no ambiente científico com a cultura popular das comunidades. E essa parece ser, justamente, a maior lição que poderemos levar desses experimentos, a sensibilidade em olhar e aprender com o entorno onde a tecnologia alimenta a conservação da identidade comunitária, aliando criatividade e memória cultural. Este talvez seja o futuro da arquitetura.
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